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Numa certa esquina

      A Música Popular Brasileira experimentou nos anos 70 um dos seus períodos de maior riqueza e diversidade. Os festivais realizados na década anterior abriram caminho para que novos compositores se firmassem no cenário musical. As gravadoras tinham interesse em divulgar a produção musical que surgia das mais diversas vertentes e propostas, cumprindo, assim, seu papel cultural. Desse modo, os anos 70 consolidaram o prestígio e a popularidade de criadores como Chico Buarque, Caetano Veloso, Edu Lobo, Gilberto Gil. Os anos 70 presenciaram a chegada ao centro do país da música do pessoal do norte e nordeste, via Belchior, Ednardo, Alceu Valença e os Novos Baianos. Deram as boas vindas a Gonzaguinha, Ivan Lins, João Bosco e Djavan. Testemunharam a força do cantar de Elis Regina, Gal Costa e Maria Bethânia. O samba de raiz se modernizou com Paulinho da Viola. O rock nacional encontrou seu lugar nas paradas, com Rita Lee, Secos & Molhados e Raul Seixas. Tim Maia surge com seu “soul” brasileiro. Enfim, o que se ouvia pelas ondas sonoras das rádios de todo o país passava muito além da padronização e massificação que tomou conta do cenário a partir dos meados da década seguinte.

      Influenciados por essa riqueza musical, um grupo de passo-fundenses começa a se encontrar numa certa esquina da vila cruzeiro. Esses encontros, que se iniciaram lá por 1973, se mantiveram até os primeiros anos da década seguinte.
      E apesar da informalidade dessas rodas de viola, da ausência de uma noção ou intenção de se criar ali um movimento musical e da quase completa indiferença por parte do grande público local, esses encontros acabaram por criar uma “escola violonística” interessante e bastante incomum para os padrões então vigentes no meio musical do Rio Grande do Sul. Diferentemente dos músicos da geração anterior, que foram influenciados basicamente pela jovem guarda e pelos bailes, a nova safra local seguia a trilha sonora do violão moderno de João Gilberto. Os acordes, a batida, o repertório, tudo o que se ouvia naquela esquina estava sintonizado com o que de mais contemporâneo se vinha criando no centro do país. Até hoje músicos de outras partes do Brasil se surpreendem pelo fato de Passo fundo ter gerado uma safra de tantos sambistas.

      Muitos nomes bateram ponto ali. Músicos que já estavam iniciando na profissão e amadores interessados naquele som. Alguns conseguiram construir carreira sólida em nível nacional e internacional, como Alegre Corrêa, que hoje toca com Joe Zawinul e na Vienna Art Orchestra; Dudu Trentin, arranjador da Rede Globo; Ronaldo Saggiorato e Guinha Ramires, do grupo Dr. Cipó. Outros, apesar de não terem se profissionalizado, não se afastaram da música e prosseguem produzindo e atuando amadoristicamente. Todos têm um elo em comum: a esquina do Grigolo, mais adiante conhecida como a esquina do perfume. Rua Coronel Pelegrine esquina com Plácido de Castro.
      Hoje é possível comprovar que aqueles caras, embora inconscientemente, estavam deflagrando um movimento cuja importância cultural não foi percebida pela comunidade local e somente hoje vem sendo reconhecida, senão pelo prestígio musical de seus principais protagonistas, pela quantidade de descendentes musicais que gerou.
      Todavia, para muitos moradores dos arredores da Vila Cruzeiro, aquilo não passava de “um bando de vagabundos”. Realmente, naqueles tempos, ter um filho músico era razão suficiente para o desespero de mães e ira de pais. Hoje, a história é diferente. Os próprios pais patrocinam a compra de equipamentos, emprestam a garagem para os ensaios das bandas dos filhos, pagam cursos de música aos talentos caseiros.

      Pois bem, essa esquina vai ser o personagem central da publicação de um livro que estou preparando em parceria com o compositor Raul Boeira. A intenção é revelar a aventura musical daqueles vagabundos que tiveram a coragem de apostar no samba, na bossa nova e no baião. Que descobriram, mais tarde, que era possível jogar tudo isso num caldeirão e, adicionando jazz, música latino e centro-americana, preparar uma grande sopa de sabor universal. Que aprenderam música praticamente sem recursos, sem facilidades, distantes dos ambientes acadêmicos, dividindo o mesmo violão, na batalha. Num tempo em que raras eram as revistas de acordes cifrados, quanto mais “songbooks” ou métodos de jazz importados. Num tempo em que não havia teatro na cidade, nem bares com música ao vivo.

      O período focalizado será de 1973, ano em que Alegre Corrêa e Itamar Arnold começaram a aprender os primeiros acordes, até 1983 quando o grupo Água de Cheiro (formado por Alegre, Ronaldo Saggiorato, Dudu Trentin, Sérgio Florão, Juarez Ferreira e outros) realizou o show Encontro com a Arte Atual, no Clube Caixeral. Ali, pela primeira vez, depois de dez anos na contramão, aquele grupo mostrou um espetáculo que continha uma proposta de valor realmente artístico, dentro de um nível de produção que, até então, não havia sido alcançado por nenhum outro músico ou grupo musical da cidade. Mas ao mesmo tempo em que o show confirmou a qualidade, a capacidade e a modernidade daqueles músicos, foi a prova definitiva de que a sua estatura estava acima dos padrões locais, que a única alternativa era apostar suas fichas nos grandes centros. E foram. Porto Alegre, Florianópolis, Rio, Viena. Mas aí começa uma outra história.

      Acompanhará o livro um CD com canções de alguns dos músicos que passaram pela esquina. Serão 10 ou 12 composições, com arranjos que terão o violão como peça central, preservando-se, assim, o clima de “roda de viola”, característica principal daqueles encontros. As pesquisas e as entrevistas já estão em andamento. Naturalmente, a segunda e mais difícil fase do projeto, que é a edição do livro e a produção do CD dependerá de recursos financeiros e de apoio de parceiros culturais. Aliás, quando o assunto é música, a parceria é fundamental.

 

Escrito por Raul Boeira e Gerson Lopes na revista Água da Fonte da Academia Passo-Fundense de Letras – Ano 4 – nº 5 – Junho de 2007

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